Giovanni Pico della Mirandola foi um filósofo neoplatônico, do Século XV, cuja “Oratio de Hominis Dignitate”, o Discurso sobre a dignidade humana, de 1487, é a primeira menção a dignidade da pessoa humana, princípio presente em diversas constituições liberais democratas, visto também em diplomas internacionais, como a Carta da ONU.
A obra de Giovanni Pico della Mirandola serviu como base para a Declaração dos Direitos Humanos da ONU, devido a seu caráter atemporal, de aguçado refinamento intelectual e de inspiração humanista.
Assim: Omnes homines dignitate et iure liberi et pares nascuntur, rationis et conscientiae participes sunt, quibus inter se concordiae studio est agendum: Artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948: “ Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade. ”
Antecede a Pico, a filosofia Cristã, Ecclesia Pares, sob a teorização de João e Paulo, que dá ênfase a doutrina da verdade da fé.
É de se ressaltar que sérios eventos conduziram às transformações históricas nas quais Giovanni Pico della Mirandola estava inserido. Possivelmente, a fome e a peste do início do Século XIV, especialmente entre 1315 e 1317, em conjunto com o fim da expansão medieval e a nova força do comércio, tenham alavancado a necessidade de mudança e de novas reflexões a respeito do papel humano e sua natureza.
O jovem renascentista afirma que no homem está presente a individualidade e o livre arbítrio. O homem, para Giovanni Pico, é o elo entre o microcosmo e o macrocosmo, o liame entre o mundo terreno e Deus.
Tanto é assim que a Constituição Brasileira, cita essa ligação do homem com a luz de Deus no Preâmbulo da Carta ao declarar: “ (…) promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. ”
A seguir, dispõe sobre a dignidade humana ao dizer: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana (…). ”
São comandos cristalinos que deveriam iluminar os caminhos de conduta das instituições brasileiras, pois requer a proteção de Deus e logo a seguir estabelece vínculo com os direitos humanos.
Em nossos dias, o esgarçamento do ultraliberalismo, sistema este inaugurado em fins do Século XX, mais precisamente a partir de 1979, com a ascensão de Thatcher e Reagan e o fim da União Soviética, tenha mostrado seu total descolamento com a realidade da miséria humana escancarada pelo advento da Covid.
Um sistema também colocado em xeque pela tese de desconexão entre aumento de salário e desemprego nos estudos sobre as desigualdades no mercado de trabalho, conforme apontou o economista David Card, um dos vencedores do Nobel da Economia em 2021.
Sem nos esquecermos de toda a importância dos filósofos contemporâneos, encontramos hoje, de forma mais direta, a realidade da miséria e da distopia em obras comerciais como filmes, músicas e semelhantes.
Recentemente pudemos acompanhar no longa “Parasita”, a realidade dos porões sul coreanos, retratados por Bong Joon Ho, diretor do filme.
Agora em 2021, a série Round 6, exibida na Netflix, nos traz alegorias sobre a ruína dos excluídos da mesma Coreia do Sul, e o ser humano matável, já tão bem descrito por Agambem.
Nos causou um certo estranhamento este quadro, pois a Coreia do Sul, após uma política educacional de longo prazo, colocou o país em um patamar de desenvolvimento muito superior ao Brasil. Por outro lado, demonstra que a Coreia não está livre da exclusão social.
Não há como não realizar um paralelo do jogo batatinha 1,2,3 da série Round 6, com o tratamento dado aos brasileiros mais pobres na pandemia: a demora e proposta de baixo auxilio em emergencial pelo governo, revertido pelo Congresso para R$600,00 mensais em algumas poucas parcelas; dos trabalhadores em transportes públicos lotados quando não havia sequer máscaras; da injustificável demora para compra de vacinas; pela demora em reativar o auxílio emergencial; pela desinformação veiculada em órgãos oficiais; por fazer idosos de cobaias, conforme nos mostrou a CPI, dentre outros exemplos.
E mais, o total descompasso com a dignidade humana veiculado nas notícias da venda de ossos, carcaças de frango e de pessoas se socorrendo de restos descartados para consumo de subsistência.
Talvez estejamos vivendo cenário semelhante ao ocorrido no Século XIV, com peste e miséria, e nos parece que uma ruptura com o sistema atual se faz mais do que necessária.
Porém, é desalentador vermos que de Giovanni Pico della Mirandola até Round 6 tenhamos aprendido tão pouco.